TRANSGÊNEROS SOFREM COM A BUROCRATIZAÇÃO NA ALTERAÇÃO NO NOME DO REGISTRO.
#Brasil permite mudança no nome sem necessidade de realizar cirurgia, apresentar laudo médico ou entrar com ação judicial. No entanto, alguns Estados estão dificultando esse processo.
Ter seu nome em um documento pode parecer uma coisa fácil para a maioria das pessoas, mas para muitos ainda é motivo para dor de cabeça. Desde 2018, as pessoas transexuais podem mudar seu registro no Brasil sem necessidade de realizar cirurgia, apresentar laudo médico ou entrar com ação judicial. No entanto, alguns Estados estão dificultando esse processo. O Rio de Janeiro é um deles.
Letícia Furtado, coordenadora do Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e Direitos Homoafetivos da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, explica que o órgão já começou a peticionar sobre a questão, a partir de um dossiê de casos em que a alteração do registro foi dificultada.
"No caso da pessoa que, por exemplo, se chamava João e era considerada homem, e se reconhece como Maria e mulher, o registro dela vai ser alterado e vai passar a ser Maria (mulher)", explica. "A certidão de nascimento vai ser alterada e a partir disso não vai mais constar para qualquer pessoa do mundo que ela era João. Com essa certidão, ela vai tirar todos os outros documentos", afirma. É assim, pelo menos na teoria, porque, segundo ela, o processo está sendo mais difícil do que o esperado, embora a decisão já tenha facilitado a situação.
Em março de 2018, o STF decidiu pela alteração do nome de transgêneros no registro civil. Em junho do mesmo ano, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) regulamentou a medida.
"A regulamentação exige mais documentos do que a gente achava necessário, e verificamos que alguns cartórios em alguns Estados são mais burocráticos e dificultam mais do que outros. Aqui no Rio, temos dificuldades", afirma. "Esperávamos que fosse mais rápido, mas temos procedimentos que demoram meses", ressalta. "Temos, inclusive, que tomar algumas medidas. Há mais de um mês, tivemos que fazer uns peticionamentos, perante o juiz de registro, provocando uma discussão do por que os cartórios estão colocando tantas dificuldades e, às vezes, dirigindo o procedimento ao juiz do cartório, se a proposta do regulamento não era essa", explica.
Furtado explica que segundo a lei, o caso só precisa ir para o juiz no caso de dúvida, como de má-fé. No entanto, este procedimento está sendo comum. "Se a proposta era não judicializar e fazer extrajudicialmente, por que está se mandando para o juiz?", questiona.
Com os peticionamentos, alguns casos começaram a ser resolvidos, e outros que sequer tinham informações sobre, passaram a ter resposta. "A gente tem também um procedimento conjunto com associações trans, que a Dra. Maria Eduarda Aguiar, uma advogada trans, peticionou no TJ. Ela também provocou o corregedor do tribunal, que é responsável pela questão dos cartórios", afirma. "Ela comunicou, no ano passado, que está tendo esse problema. Sinto que essas provocações estão gerando resposta", diz. "Mas se isso não for suficiente, e se for necessário, a gente vai entrar no STF, com uma reclamação", ressalta. "Essas pessoas estão pedindo o reconhecimento da sua existência no mundo jurídico. Enquanto elas não têm um documento de acordo com que elas são, elas não existem para o mundo jurídico", diz. A coordenadora também cita casos que o procedimento demorou seis, nove meses.
A alteração do registro civil é diferente do uso do nome social. "O nome social é o nome que a pessoa trans usa socialmente, porque ela ainda não conseguiu fazer a alteração nos registros dela", explica. "A pessoa se identifica de uma forma diferente da que ela foi registrada ao nascer".
Matheus* nasceu Joana*, de acordo com sua certidão. No entanto, ele sempre se sentiu excluído por não se encaixar no que era considerado padrão. Só começou a ouvir sobre sexualidade e gênero por volta dos 13 anos. Ano passado, ele se assumiu transgênero para a família e amigos. A aceitação ainda está sendo difícil.
No dia 12 de março, ele foi ao Detran, com hora marcada, para fazer sua carteira de identidade social, documento que apresenta o nome social. No entanto, os funcionários informaram que a modalidade havia sido retirada do sistema no dia anterior, porque eles iam começar a colocar o nome social na própria identidade civil. Porém, ainda não havia a possibilidade de fazer a nova identidade. Matheu ligou, então, para a central de informações e a resposta foi: "se constava no sistema, e você agendou, é porque fazem sim".
Até a última quarta-feira (3), as informações sobre a carteira social continuavam no ar no site do Detran. Segundo o departamento, foram emitidas 48 carteiras sociais nos três primeiros meses deste ano. Questionado se o agendamento dessa carteira estava funcionando, o órgão respondeu, em nota na última quarta, que "o agendamento para o requerimento da carteira está normalizado".
No dia seguinte, Matheus foi no Poupatempo para tentar fazer a carteira. O primeiro funcionário que lhe atendeu nem sabia que a carteira existia, a segunda disse o mesmo que o funcionário do Detran. No fechamento desta reportagem, na última quinta-feira (4), o Detran incluiu um aviso no site, dizendo que o serviço de carteira social foi incorporado no novo moldelo da identidade civil, instituído pelo decreto da Presidência nº 9.278, de 5 de fevereiro de 2018.
"O que mais me preocupa nisso tudo é que me matriculei na faculdade com meu nome social e alguns lugares conta com meu nome de registro. Eu fico com medo de, no final, alegarem que não havia nenhum Matheus real", desabafa. Perguntado se tinha vontade de alterar seu nome de registro, ele disse que se interessou muito com a possibilidade, mas que desanimou com a demora do procedimento, após ouvir relatos de amigos que tentam o processo.
Desde 2011, decretos no município e no Estado do Rio determinam a inclusão e uso do nome social no âmbito da Administração Direta e Indireta. Em março desse ano, o decreto ganhou status de lei na cidade.
*Os nomes foram trocados para segurança do entrevistado.
Ter seu nome em um documento pode parecer uma coisa fácil para a maioria das pessoas, mas para muitos ainda é motivo para dor de cabeça. Desde 2018, as pessoas transexuais podem mudar seu registro no Brasil sem necessidade de realizar cirurgia, apresentar laudo médico ou entrar com ação judicial. No entanto, alguns Estados estão dificultando esse processo. O Rio de Janeiro é um deles.
Letícia Furtado, coordenadora do Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e Direitos Homoafetivos da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, explica que o órgão já começou a peticionar sobre a questão, a partir de um dossiê de casos em que a alteração do registro foi dificultada.
"No caso da pessoa que, por exemplo, se chamava João e era considerada homem, e se reconhece como Maria e mulher, o registro dela vai ser alterado e vai passar a ser Maria (mulher)", explica. "A certidão de nascimento vai ser alterada e a partir disso não vai mais constar para qualquer pessoa do mundo que ela era João. Com essa certidão, ela vai tirar todos os outros documentos", afirma. É assim, pelo menos na teoria, porque, segundo ela, o processo está sendo mais difícil do que o esperado, embora a decisão já tenha facilitado a situação.
Em março de 2018, o STF decidiu pela alteração do nome de transgêneros no registro civil. Em junho do mesmo ano, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) regulamentou a medida.
"A regulamentação exige mais documentos do que a gente achava necessário, e verificamos que alguns cartórios em alguns Estados são mais burocráticos e dificultam mais do que outros. Aqui no Rio, temos dificuldades", afirma. "Esperávamos que fosse mais rápido, mas temos procedimentos que demoram meses", ressalta. "Temos, inclusive, que tomar algumas medidas. Há mais de um mês, tivemos que fazer uns peticionamentos, perante o juiz de registro, provocando uma discussão do por que os cartórios estão colocando tantas dificuldades e, às vezes, dirigindo o procedimento ao juiz do cartório, se a proposta do regulamento não era essa", explica.
Furtado explica que segundo a lei, o caso só precisa ir para o juiz no caso de dúvida, como de má-fé. No entanto, este procedimento está sendo comum. "Se a proposta era não judicializar e fazer extrajudicialmente, por que está se mandando para o juiz?", questiona.
Com os peticionamentos, alguns casos começaram a ser resolvidos, e outros que sequer tinham informações sobre, passaram a ter resposta. "A gente tem também um procedimento conjunto com associações trans, que a Dra. Maria Eduarda Aguiar, uma advogada trans, peticionou no TJ. Ela também provocou o corregedor do tribunal, que é responsável pela questão dos cartórios", afirma. "Ela comunicou, no ano passado, que está tendo esse problema. Sinto que essas provocações estão gerando resposta", diz. "Mas se isso não for suficiente, e se for necessário, a gente vai entrar no STF, com uma reclamação", ressalta. "Essas pessoas estão pedindo o reconhecimento da sua existência no mundo jurídico. Enquanto elas não têm um documento de acordo com que elas são, elas não existem para o mundo jurídico", diz. A coordenadora também cita casos que o procedimento demorou seis, nove meses.
A alteração do registro civil é diferente do uso do nome social. "O nome social é o nome que a pessoa trans usa socialmente, porque ela ainda não conseguiu fazer a alteração nos registros dela", explica. "A pessoa se identifica de uma forma diferente da que ela foi registrada ao nascer".
Matheus* nasceu Joana*, de acordo com sua certidão. No entanto, ele sempre se sentiu excluído por não se encaixar no que era considerado padrão. Só começou a ouvir sobre sexualidade e gênero por volta dos 13 anos. Ano passado, ele se assumiu transgênero para a família e amigos. A aceitação ainda está sendo difícil.
No dia 12 de março, ele foi ao Detran, com hora marcada, para fazer sua carteira de identidade social, documento que apresenta o nome social. No entanto, os funcionários informaram que a modalidade havia sido retirada do sistema no dia anterior, porque eles iam começar a colocar o nome social na própria identidade civil. Porém, ainda não havia a possibilidade de fazer a nova identidade. Matheu ligou, então, para a central de informações e a resposta foi: "se constava no sistema, e você agendou, é porque fazem sim".
Até a última quarta-feira (3), as informações sobre a carteira social continuavam no ar no site do Detran. Segundo o departamento, foram emitidas 48 carteiras sociais nos três primeiros meses deste ano. Questionado se o agendamento dessa carteira estava funcionando, o órgão respondeu, em nota na última quarta, que "o agendamento para o requerimento da carteira está normalizado".
No dia seguinte, Matheus foi no Poupatempo para tentar fazer a carteira. O primeiro funcionário que lhe atendeu nem sabia que a carteira existia, a segunda disse o mesmo que o funcionário do Detran. No fechamento desta reportagem, na última quinta-feira (4), o Detran incluiu um aviso no site, dizendo que o serviço de carteira social foi incorporado no novo moldelo da identidade civil, instituído pelo decreto da Presidência nº 9.278, de 5 de fevereiro de 2018.
"O que mais me preocupa nisso tudo é que me matriculei na faculdade com meu nome social e alguns lugares conta com meu nome de registro. Eu fico com medo de, no final, alegarem que não havia nenhum Matheus real", desabafa. Perguntado se tinha vontade de alterar seu nome de registro, ele disse que se interessou muito com a possibilidade, mas que desanimou com a demora do procedimento, após ouvir relatos de amigos que tentam o processo.
Desde 2011, decretos no município e no Estado do Rio determinam a inclusão e uso do nome social no âmbito da Administração Direta e Indireta. Em março desse ano, o decreto ganhou status de lei na cidade.
*Os nomes foram trocados para segurança do entrevistado.
Transgêneros sofrem com burocratização |
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